Crónicas Uruguayas - Boletín Electrónico de Uruguayos en Brasil - Año 05 No. 52 - 09 de mayo de 2010 - Coordinador: Roberto Fernández, Rio de Janeiro (RJ) - E-mail: UruguayosEnBrasil@gmail.com - Diario Crónicas, Mercedes, Uruguay, 09 de junio de 2010 - Revista eletrônica "Tradutores", 03 de maio de 2010. 

Meu pai César

Gonzalo Guimaraens Acquistapace é jornalista e tradutor. E-mail: tradutor24horas@uol.com.br

No domingo 25 de abril pp., quando cheguei no aeroporto internacional de Montevidéu, pela primeira vez não consegui achar aquele rosto forte, com cabelo branco abundante e olhos castanhos gentis, mas sempre perscrutadores, de meu pai César Guimaraens Bonifacio, que invariavelmente ia me aguardar. Uruguaio e sorianense de pura cepa, tocando os 90 anos com a ponta de seus dedos, era para ele um dos maiores motivos de orgulho ir a pegar o filho conduzindo seu carro, e, dessa maneira, demonstrar-lhe que continuava na ativa.

Ao voltar ao Brasil, seu filho, mais orgulhoso ainda, contava a seus amigos atônitos que seu pai de quase 90 anos, mais uma vez, tinha ido receber a ele pilotando seu carro.

Mas, desta vez, não aconteceu dessa maneira. No dia anterior, sábado 24 de abril, ele tinha sofrido um forte infarto e estava na UTI da Clínica Espanhola, em Montevidéu.

Do aeroporto fui dar um beijo na minha mãe, Alba Acquistapace, com a qual ele acabava de cumprir 57 anos de casado, e dar um abraço em meu sobrinho Juan Andrés, de 19 anos, a quem meu pai sempre considerou como um filho. Por essas coisas imprevisíveis da vida, minha irmã Eleonora, sempre tão unida a ele, estava visitando o longínquo deserto salgado de Uyuni, nos mais altos píncaros da Bolívia, sem comunicação telefônica.

Corri até a Clínica Espanhola. Papai já estava inconsciente. Ele tinha recebido a Unção dos Enfermos. Cheguei a ficar com ele perto de uma hora. Refresquei sua fronte, sua face e seu peito com água da fonte de Lourdes, que eu tinha trazido do sul da França. Pouco depois, ele faleceu.

Desta vez, meu pai não foi me pegar, mas teve o derradeiro gesto paternal de me aguardar antes de ele mesmo empreender uma longa viagem.

Sua vida foi a de um carregador disposto a aliviar as dificuldades dos mais próximos, familiares e amigos.

Quando o já longínquo golpe de Estado de 1933 arrastou à clandestinidade seu pai, Juan Florentino Guimaraens, legislador e membro do governo do Presidente Brum, papai, então um rapaz de 12 anos, começou a vender produtos cárneos para ajudar a sustentar sua mãe e seus cinco irmãos. Ao mesmo tempo, em seus bolso ele levava e trazia bilhetes com mensagens confidenciais de integrantes do governo deposto, pois aos guardas não lhes ocorria inspecionar o pequeno vendedor de lingüiças.

Durante o restante de sua longa vida ele continuou carregando e ajudando. Até que, faltando poucos dias para cumprir os 90 anos, o velho carregador, sentindo que estava chegando a hora de começar a ser carregado, teve talvez um gesto interior de inconformidade e as forças o abandonaram subitamente.

Das lembranças íntimas de Mercedes, resgato os passeios vespertinos ao Hipódromo local, eu com uns quatro anos, pedalando com muito esforço um pequeno triciclo, e ele colocando sua mão nas minhas costas, me ajudando a enfrentar a subidas; os passeios em barco pelo Rio Negro; as caminhadas pela beira-rio e a pesca de peixinhos denominados "mojarritas" na Ilha do Porto.

Resgato também, ainda que em poucas palavras, seus quarenta anos de serviço público na Câmara Municipal de Soriano, onde tirava sua "camiseta" do Partido Colorado para acolher e assessorar os representantes de todos os Partidos, com invariável eqüidistância e imparcialidade.

Após as últimas eleições nacionais, liguei a meu pai para lhe perguntar como se sentia com a derrota de seu candidato. Ele respondeu: "Estou tranqüilo, relendo a história do Partido Colorado". Não foi por acaso que sua cunhada, María Mercedes "Mecha" Acquistapace, integrante do Partido vencedor, escolheu para deixar junto a seus restos mortais, como última homenagem e demonstração de afeto, três rosas bem "coloradas".

A regra de que cada filho considera seu próprio pai como o melhor dos pais é talvez uma das poucas regras sem exceções. Pode parecer paradoxal. Mas aquilo que considero talvez sua melhor herança foi o reconhecimento feito por ele, quando minha irmã e eu éramos ainda adolescentes, daquilo que tinha feito na sua vida e não devia ter feito, e daquilo que não fez e devia ter feito.

Em seus derradeiros instantes de lucidez pediu para ser levado à sua terra natal, Dolores, junto com seus pais, no antigo panteão da família materna Bonifacio, no cemitério local, nas margens do Rio San Salvador. É o que acabo de fazer com minha irmã Eleonora, antes de eu retornar a São Paulo, cumprindo com sua última vontade.

Pede-se uma oração pelo eterno descanso de sua alma.

São Paulo, 03 de maio de 2010.