Brasil: esquizofrenia oficial

Percival Puggina (*)

Relações internacionais, quando sadias, devem ser marcadas por autonomia e reciprocidade. Nações soberanas são autônomas; nações sensatas pautam sua conduta para com as demais por critérios de reciprocidade.

Se isso parece correto, resultam claramente inconvenientes os alinhamentos automáticos, que fazem determinados países caudatários de decisões tomadas por outros, como se tudo aquilo que seja bom para estes resulte igualmente benéfico para aqueles. Nem sempre é assim. A autonomia e o zelo pelo interesse nacional impõem que possíveis alinhamentos sejam deliberados caso a caso.

Penso que se houve um tempo em que as relações entre o Brasil e os Estados Unidos foram marcadas por alinhamento automático, hoje resvalamos para uma situação ainda mais equivocada. O desalinhamento automático em que nos encontramos talvez seja a principal evidência da dupla personalidade que caracteriza nossos novos dirigentes.

Na condução dos negócios internos, o Governo Lula teria surpreendido tanto à direita (se ela existisse) quanto espantou a esquerda (única força política real em nosso país). Mais ortodoxa no comando da economia do que seu antecessor, mais aferrada à defesa da moeda (que antes denominava "mentira do Real") do que seu criador, a turma do "Fora FHC, fora FMI" despachou o primeiro e se abraçou no segundo.

Já a política externa é uma evidência da esquizofrenia que acometeu o governo. Só para recordar:

a) tão logo eleito, Lula pediu e obteve de Fernando Henrique que fornecesse petróleo ao sinistro Hugo Chávez (inimigo de carteirinha dos Estados Unidos) no episódio da greve dos petroleiros;

b) assim que assumiu, correu ao encontro do venezuelano para lhe levar seu solidário afago;

c) quando os Estados Unidos pediram ao Brasil que declarasse as FARC como organização terrorista (coisa que até Fernandinho Beira-Mar sabe ser verdadeira), Lula se recusou, alegando o desejo de preservar neutralidade para mediar um impossível entendimento entre o governo colombiano e a narco-guerrilha;

d) com reiterada insistência, o governo brasileiro tem deixado clara sua afeição e conivência com o serial-killer do Caribe e sua política externa;

e) quando as forças da coalização se preparavam para atacar o Iraque, o Brasil, sem necessidade alguma de o fazer, condenou a ação e ofereceu asilo diplomático a Saddam Hussein.

Será isso o bastante? Talvez fosse mais do que suficiente para evidenciar nosso desastrado e inconveniente desalinhamento automático. No entanto, o Brasil se recusa a tratar com seriedade a presença de terroristas na Tríplice-Fronteira e ainda faz questão de mostrar sua simpatia para com Muammar al-Kadafi, Yasser Arafat e outras figuras cujos simpatizantes dificilmente recebem visto de entrada nos Estados Unidos.

Se, além de tudo, o Brasil é o segundo país com maior número de clandestinos em território norte-americano, se são constantes as apreensões de passaportes brasileiros falsificados, se é impossível negar que se estabeleceu um eixo Havana-Caracas-Brasília, como esperar que nossos visitantes sejam tratados, lá, como se cidadãos britânicos fossem? Penso que a retaliação nos nossos pontos de entrada (centenas de idosos desembarcados de um navio, mantidos em fila durante oito horas, é maldade que nem o Berzoini cometeria) seja um detalhe menor de um problema muito maior.

Em definitivo: internamente, estamos mais para Palocci do que para Frei Betto; externamente, mais para Frei Betto do que para Palocci. E isso é esquizofrenia. Os fatos de Monterrey, a retaliação nos pontos de entradas, e tudo mais que acima alinhei, são evidências daquilo que denomino política externa conduzida com adolescentes critérios ideológicos de grêmio estudantil nos anos 60.

(*) Percival Puggina é arquiteto, escritor e articulista dos principais jornais do Rio Grande do Sul (este artigo foi publicado, originalmente, no site www diegocasagrande com br em 15 de janeiro de 2004).